As Eríneas aparecem em "Eumênides", a terceira peça da trilogia "Oresteia", de Ésquilo. A obra narra o julgamento de Orestes, perseguido pelas Eríneas por ter assassinado sua mãe, Clitemnestra, em vingança pela morte de seu pai, Agamenon. Representando as forças primitivas da vingança, as Eríneas exigem que o matricídio seja punido.
Orestes busca proteção no templo de Apolo, que o defende, argumentando que seu ato foi justo para vingar o assassinato do pai. Atena intervém e propõe um julgamento no Areópago, onde o destino de Orestes será decidido. Quando o júri empata, Atena dá o voto de desempate a favor da absolvição de Orestes, mas oferece às Eríneas um papel novo e honrado na cidade de Atenas.
Transformadas em Eumênides ("as benevolentes"), elas passam a simbolizar a justiça conciliatória em vez da vingança cega. A peça celebra a transição de um sistema de justiça primitivo e violento para um modelo baseado em leis e julgamento coletivo, marcando um momento simbólico de evolução cultural e política.
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A transformação das Eríneas em Eumênides, evocada por Melanie Klein (Inveja e Gratidão, 1957), não é apenas uma metáfora mitológica para o processo de reparação psíquica, mas também uma alegoria para a jornada de um self devastado em direção à possibilidade de reconexão e segurança. O mito, profundamente enraizado na tragédia de Ésquilo, carrega a ideia de que o horror e a perseguição podem ser apaziguados, de que as forças destrutivas podem ser transformadas em proteção e cuidado. Na psicanálise relacional, essa mesma lógica se desdobra na passagem de um apego inseguro para um apego seguro — um movimento que é, ao mesmo tempo, reparador e criador, fundando um novo lugar de existência.
Klein sugere que as Eríneas, aquelas figuras da vingança e do terror, são projeções de um mundo interno povoado por objetos persecutórios, derivados do ódio e da culpa primitiva. Essas figuras, no entanto, podem se tornar Eumênides, entidades benevolentes, quando a reparação se torna possível. Na narrativa da tragédia, isso ocorre por meio da mediação, do reconhecimento e, acima de tudo, do acolhimento. De forma análoga, no trabalho clínico, o terapeuta relacional oferece um espaço no qual os estados de angústia, desamparo e confusão podem ser simbolizados e, assim, transformados. O apego inseguro, marcado pela oscilação entre o medo da perda e o desejo de conexão, encontra na relação terapêutica um terreno fértil para reescrever sua história.
Essa transformação não é um simples processo linear, mas um movimento dialético que exige enfrentamento e criação. O apego inseguro nasce de uma ferida — da inconsistência, do abandono, ou do excesso de controle — e cria um campo de antecipação constante de rejeição. As Eríneas do sujeito apegado de forma insegura aparecem na forma de vozes internas, críticas e implacáveis, que insistem na impossibilidade de confiar. Aqui, como no mito, o espaço para a mudança reside na introdução de algo novo: um outro que não é simplesmente o espelho da dor antiga, mas um agente da transformação.
Na psicanálise relacional, o terapeuta é esse outro que oferece a possibilidade de uma nova experiência relacional. O vínculo terapêutico, com sua promessa de consistência e reconhecimento, desafia o circuito fechado da repetição traumática. As Eumênides surgem quando o paciente começa a sentir que o outro não é mais uma ameaça, mas um suporte, um continente. Esse processo exige não apenas a presença de um outro empático, mas também a reconstrução da narrativa interna: o paciente precisa reescrever sua história emocional, incorporando as experiências de reparação e validação.
Essa mudança no estilo de apego, de inseguro para seguro, é, na essência, uma transmutação psíquica. Assim como as Eríneas se tornam Eumênides pela ação da deusa Atena — uma figura de sabedoria, mediação e justiça —, o self, sob a influência de um vínculo relacional reparador, pode transformar suas figuras internas persecutórias em figuras de apoio. Atena não anula as Eríneas, mas as integra, dando-lhes um novo lugar e função. Do mesmo modo, na clínica, as partes do self que antes perseguiam o sujeito não desaparecem, mas encontram um espaço novo, agora carregado de sentido e cuidado.
Essa integração é o cerne da segurança relacional. O apego seguro não significa a ausência de dor ou conflito, mas a capacidade de suportá-los sem ser devastado. Significa que as Eumênides, antes Eríneas, agora velam pelo equilíbrio interno, ao invés de semear o caos. O trabalho psicanalítico, como o julgamento mítico de Atena, não extingue as forças destrutivas, mas as redireciona, transformando-as em aliadas de um self mais integrado e criativo.
Assim, o mito ressoa com a psicanálise, não apenas como uma ilustração, mas como uma verdade profunda sobre a possibilidade de transformação humana. As Eríneas e as Eumênides coexistem em nós, e é na relação — relacional e analítica — que encontramos o caminho para reconciliá-las. O que emerge desse processo é mais do que a reparação de um vínculo; é a criação de um espaço interno onde a vida pode ser vivida com mais liberdade, confiança e autenticidade.
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